Curvadas no pequeno poço, a aposentada Laíde Assonini e a filha Maria Helena contemplam o remanso da água lá no fundo. Quem sabe desta vez surge a imagem de Nossa Senhora Aparecida, ou Nossa Senhora do Poço, como está sendo chamada pelos moradores de Irapuã. Depois de alguns minutos, as duas se levantam. Não viram nada. Mas não desistem. “Tem de estar com o espírito preparado”, resmunga Laíde. A esperança da aposentada é impulsionada por muita gente que garante ter visto, bem nítida, a imagem da santa no fundo do poço e na pequena capela construída ao lado rodeada pela cana-de-açúcar no bairro rural Barreirinho. Uma imagem congelada, como uma estátua. São essas pessoas que garantem a romaria cada vez mais intensa ao poço. Em oito dias, aproximadamente mil pessoas visitaram o local, conforme atesta o livro de visitas da capela. Os registros revelam que não é só gente de Urupês, Catanduva e Rio Preto que vem atrás da imagem. Fiéis de Campinas e São Paulo também são atraídos pelas aparições. O aposentado Carlos Marin, 66 anos, nascido em Irapuã, mora na Capital e tem frequentado o poço. “Vou ficar mais umas semanas aqui e não posso deixar de vir. Nunca vi a santa, mas acredito no que dizem as pessoas daqui.”
Todas bebem a água do poço, que os fiéis de Irapuã garantem ter poder de cura. E levam litros e mais litros para casa - tem devoto que diz ter visto a imagem da santa na garrafa e até no copo com a água do poço, uma pequena cisterna com cerca de três metros de profundidade próxima da nascente de um córrego. “Perdi a conta de quantos já viram a imagem dela nesta água”, diz o lavrador Milton da Silva Oliveira, 56 anos, uma espécie de zelador do local que se emociona ao relatar as duas vezes em que viu Nossa Senhora no fundo do poço. “Era uma imagem linda. Senti muita paz, uma felicidade grande no coração.” As primeiras aparições de Nossa Senhora, segundo os fiéis, começaram há 56 anos, quando três meninas teriam visto a imagem de Nossa Senhora no pequeno poço construído para irrigar uma plantação de alho. Poucos anos depois, porém, o local foi esquecido. Até o ano passado, estava tudo abandonado. O poço fora tampado e a capela corria risco de desabamento. Até que Oliveira, devoto de Nossa Senhora, decidiu reformar a capela.
Com dinheiro de rifas e quermesses, rebocou tudo novamente, trocou o telhado, forrou o teto, pôs piso, pintou as paredes de azul claro e refez o altar um pouco mais alto que o original, onde estão imagens de Nossa Senhora e de outros santos populares, como São José, Santo Antônio e Santo Expedito. No poço, o lavrador fez um reforço no entorno com concreto e cobriu com pedra branca. No entorno, ladrilhou com cimento. Caprichoso, fez questão de plantar rosas perto do poço. A reforma se espalhou pela redondeza e, em novembro do ano passado, a capelinha voltou a atrair devotos. Nos últimos três domingos, apareceu muito mais gente do que comporta o prédio acanhado (três metros de largura por quatro de comprimento). Ficou gente de fora até perto dos pés de cana que rodeiam a capela. Não havia mais vaga para tanto carro. Enquanto uns rezavam, outros faziam fila para tirar água do poço com uma bomba manual que Oliveira instalou, um conforto comemorado por quem tinha de puxar o líquido com um balde amarrado a uma corda.
Ecumênico
Segundo Oliveira, o poço do Barreirinho já foi visitado por espíritas e evangélicos. “Não temos preconceito aqui. A capela recebe todos, não fecha as portas nunca.” O devoto só tem medo da exposição excessiva do poço. “Se começar a vir mais gente do que já vem, não vai caber.” Oliveira também não permite a exploração comercial do local. “Teve vendedor ambulante que me procurou para botar barraquinha aqui, mas não deixo. Vira bagunça.” O zelador da capela gostaria de incrementar mais a infraestrutura do local, mas como é área particular, o dono não permitiu que ele alargasse a acanhada estrada de chão batido que dá acesso à capela. Só permitiu que ele fizesse uma pequena ponte de alvenaria no caminho para facilitar o acesso. Mas ele não desiste. Seu próximo projeto é instalar placas para captar energia solar, pois não há rede elétrica no local. Enquanto isso, o lavrador improvisou duas pequenas lâmpadas a gás na fachada da capela. O passo mais ousado será propor ao prefeito Oswaldo Alfredo Pinto, que é padre, a compra da pequena área onde fica o poço e a capela. “Até a paróquia poderia ajudar a comprar. É um terreno pequeno.” Milton da Silva Oliveira sonha alto. “Quem sabe um dia isso aqui não vira uma catedral de Nossa Senhora.”
Igreja reconhece oito aparições
A Igreja Católica reconhece apenas oito aparições de Nossa Senhora no mundo, nenhuma delas no Brasil. As duas mais famosas ocorreram em Portugal e na França. Em 13 de maio de 1917, a santa teria aparecido para três meninos em um pequeno vilarejo português. Quase seis décadas antes, em 1858, Nossa Senhora teria surgido diante de Bernadette Soubirous em uma gruta de Lourdes, na França. Outras três aparições teriam ocorrido em território francês, além do México (Guadalupe) e Bélgica. Há mais de 200 relatos de aparições marianas pelo mundo, da Rússia ao Egito, passando pelo Brasil, onde pescadores teriam encontrado a imagem de Nossa Senhora no local onde hoje existe a Basílica Nacional de Aparecida, no Vale do Paraíba, interior paulista.
“Ao pé da letra, quase todos os dias há notícia de aparições”, diz o teólogo da PUC Fernando Altemeyer. Segundo ele, a maioria desses relatos não tem credibilidade. “Muitos dos que dizem ver Nossa Senhora sofrem de algum problema mental, como esquizofrenia, ou então inventam história de má-fé”, diz. O Vaticano é rigoroso ao julgar aparições. De acordo com Altemeyer, para se tornar ao menos um evento crível aos olhos da Santa Sé, o fenômeno não pode contradizer a Bíblia nem a doutrina da Igreja e não deve esconder intenções comerciais ou mercadológicas. Além disso, os supostos visionários devem ser equilibrados psicologicamente. Na região, a última suposta aparição ocorreu há cerca de dez anos, quando devotos teriam visto a imagem de Nossa Senhora das Graças na copa de uma árvore no bairro Vila Azul, zona sul de Rio Preto.
Devotos acreditam no poder de cura da água
Milton da Silva Oliveira, zelador da capela do Barreirinho, em Irapuã, garante que a água da mina cura doenças. “Isso aqui tem um poder fantástico”, diz, apontando para uma garrafa pet cheia d’água. Oliveira relata casos de devotos enfermos que se curaram com a água do poço. De doenças simples, como feridas na pele e verrugas, até câncer na garganta e no seio. “Eu garanto que muita gente foi curada com essa água”, diz - ele não soube citar o número de supostos curados. A geladeira de Oliveira guarda vários litros da água, que ele faz questão que a reportagem beba. Confiante no poder do líquido, o lavrador faz questão de distribuir pequenos frascos para doentes de Irapuã, Urupês e Sales. “Uma mulher de Sales tinha tumor nos dois seios. Começou a tomar essa água e sumiu tudo. Só pode ser um milagre atribuído a Nossa Senhora”, diz, apontando para o céu.
Próximo ao altar da capela há uma caixa que recebe bilhetes com pedidos. “Preciso arrumar uma maior, essa aqui vive entupida de papel”, afirma Oliveira. Os que têm uma graça alcançada costumam colocar uma foto pessoal em um pequeno mural de isopor na parede lateral da igrejinha. O local está apinhado de imagens. A aposentada Josefina Carmen Ciocca Ronchi afirma ter sido curada de dores na coluna depois de ingerir a água. “Sofria muito com dor nas costas. Tentei tudo quanto é tipo de remédio, nenhum deu jeito. No ano passado, comecei a tomar essa água e melhorei em poucos dias. Só pode ser milagre.” Desde então, ela frequenta a capela pelo menos uma vez por mês. Desde dezembro o aposentado João Rosa, 63 anos, vai todos os dias ao poço. Percorre de bicicleta os cinco quilômetros que separam Irapuã do Barreirinho, a maior parte de chão batido.
Reza pelo menos uma hora na capela e sempre volta com uma garrafa pet cheia d’água, que tem gosto adocicado típico de cisterna rural. Ele já perdeu as contas das vezes que viu Nossa Senhora. “Já vi no poço, na porta da capela, perto do altar”, garante. Segundo ele, antes de surgir a santa dá um sinal, um toque leve na lata que fica ao lado do poço. A última delas acompanhada da reportagem. João apontava para o copo maravilhado, os olhos úmidos de emoção. “Ela está aqui, ó.” O repórter não viu nada além da água cristalina.
Silêncio
O padre Gerson Redígolo, que responde pelas paróquias de Irapuã e Sales, não foi encontrado para falar sobre o assunto. Segundo os fiéis do Barreirinho, o padre apoia a manifestação religiosa - ele já fez missa na capela, e costuma pegar água do poço. O bispo de Catanduva, dom Antonio Celso de Queiroz, também não foi localizado. Segundo a assessoria da diocese, que abrange Irapuã, o bispo está de férias, e só retorna em fevereiro.
Sofia foi a primeira a ver a imagem
A aposentada Sofia Polaci, 64 anos, orgulha-se de ser a primeira pessoa que diz ter visto a imagem de Nossa Senhora Aparecida no poço do Barreirinho. Tinha oito anos na época. O pai dela havia perfurado o poço para irrigar uma pequena plantação de alho. Numa tarde de domingo, a família foi aguar os pés de alho quando Sofia afirma ter tido a visão. “De longe eu só via a cabeça de Nossa Senhora, em tamanho natural. Cheguei perto, toquei nela, alisei o manto. Era uma imagem parada, como uma estátua. Depois de uns minutos ela afundou, sumiu.” Sofia gritou pelo pai, pela mãe. Garantiu ter visto a santa. No dia seguinte, os irmãos dela cavoucaram mais no poço. Nem sinal de Nossa Senhora.
A notícia correu rápida na pequena Irapuã, e o poço começou a receber visitas cada vez mais frequentes. Construíram uma capela ao lado da mina em homenagem a Nossa Senhora. Sofia passou a ser requisitada pelos fiéis. Benzia crianças, rezava perto do poço. Até que um dia uma senhora de Tambaú (SP) quis tirar uma foto da menina ao lado do poço para publicar em algum jornal da Capital. “Meus pais não deixaram e ficaram assustados. Temiam que alguém me sequestrasse.” A família deixou Irapuã e foi morar em Mendonça, cidade vizinha. Os Polaci só voltaram à cidade quase dez anos depois, quando a fama do poço já havia esmaecido.
A própria Sofia deixou de ir ao poço por muitos anos. Voltou no fim do ano passado. E diz ter visto, na porta da capela, a figura nítida de Nossa Senhora das Graças. “Era ela, com o manto azul-claro. Tenho certeza”, diz. Na juventude, ela quis ser freira. Acabou casando, teve sete filhos. Viúva há seis anos, mora em uma casa acanhada na periferia de Irapuã. No quarto, cuida de dois pequenos altares, um para Nossa Senhora Aparecida, outro para Nossa Senhora das Graças. “Sou devota das duas.”
Allan de Abreu
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