sábado, 11 de junho de 2011

Os apócrifos são citados no Novo Testamento?



Os livros apócrifos (também chamados de pseudocanônicos) são assim classificados por serem livros escritos por comunidades ditas cristãs e pré-cristãs que não foram incluídos no cânon bíblico pela comunidade verdadeiramente cristã nos primeiros séculos.
A Igreja Católica Apostólica Romana acrescenta ao cânon do Antigo Testamento sete livros que não são usados pelos judeus e pelos protestantes (Tobias, Judite, I e II Macabeus, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico e Baruc), além de dois textos adicionais, ‘História de Suzana’ em Ester e ‘Bel e o dragão’ em Daniel.
Uma das teses usadas pelos católicos para buscar o status de inspirados aos apócrifos (chamados por eles de deuterocanônicos, ou seja, de segundo cânon) está no argumento de que o Novo Testamento faz referência a estes livros centenas de vezes. Façamos então uma investigação para ver se tal argumento realmente procede.
Alguns sites católicos[1] chegam a publicar uma lista, referenciando cada versículo do Novo Testamento ao versículo do apócrifo ao qual supostamente recebe a citação.
Para tal análise, usarei as duas primeiras referências da lista constante nestes sites: Mt 4:4 = Sb 26:16 e Mt 4:15 = 1Mc 5:15.
1) Mt 4:4 = Sb 16:26;
“Jesus respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus (Dt 8,3).” [2] [Mt 4:4 – Versão Católica Ave Maria]
“para que os filhos que vós amais, Senhor, aprendessem que não são os frutos da terra que alimentam o homem, mas é vossa palavra que conserva em vida aqueles que crêem em vós.” [3] [Sb 16:26 – Versão Católica Ave Maria]
Estes textos podem ser parecidos, porém Jesus refere-se a [Dt 8:3] quando diz que está escrito:
“Humilhou-te com a fome; deu-te por sustento o maná, que não conhecias nem tinham conhecido os teus pais, para ensinar-te que o homem não vive só de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor.” [4] [Dt 8:3 – Versão Católica Ave Maria]
Neste caso, há dois pontos a serem observados:
a) Jesus, com certeza, citaria a Torah, tanto pelo grau de importância como por ser o escrito mais antigo. Muito provavelmente o versículo usado no livro de Sabedoria também faz referência a Deuteronônio.
b) Na própria versão Ave Maria, que é utilizada nas citações, há uma referência explícita a [Dt 8:3] em [Mt 4:4], porém o site que traz esta versão on-line publica a referência de [Mt 4:4] = [Sb 16:26]. Já outros sites citados colocam a referência de [Mt 4:4] = [Dt 8:3], porém Deuteronômio não é deuterocanônico.
2) Mt 4:15 = 1Mc 5:15;
“A terra de Zabulon e de Neftali, região vizinha ao mar, a terra além do Jordão, a Galiléia dos gentios,” [5] [Mt 4:15 – Versão Católica Ave Maria]
“dizendo: Congregaram-se contra nós nações de Ptolemaida, de Tiro, de Sidônia, e de toda a Galiléia das Nações, para nos destruir inteiramente.” [6] [1Mc 5:15 – Versão Católica Ave Maria]
Aqui, mais uma vez, temos um texto parecido.
Porém, a referência correta para [Mt 4:15] é [Is 9:1].
“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; sobre aqueles que habitavam uma região tenebrosa resplandeceu uma luz.” [7] [Is 9:1 – Versão Católica Ave Maria]
Você poderia me perguntar, e até com alguma razão inicial, o que tem a ver este texto com Mt 4:15, visto que não cita nenhuma das terras que constam no versículo.
Temos duas questões novamente para tratarmos:
a) A versão Ave Maria “comeu” um trecho do versículo, porém se formos olhar na tradução Vulgata Latina: “primo tempore adleviata est terra Zabulon et terra Nepthalim et novissimo adgravata est via maris trans Jordanem Galileæ gentium” [8] temos um versículo mais próximo deste: “Mas a terra, que foi angustiada, não será entenebrecida; envileceu nos primeiros tempos, a terra de Zebulom, e a terra de Naftali; mas nos últimos tempos a enobreceu junto ao caminho do mar, além do Jordão, na Galiléia das nações.”[9] [Versão ACF]
b) Os versículos anteriores [Mt 4:13-14] e o posterior [Mt 4:16] desqualificam qualquer outro tipo de referência e esclarecem totalmente a que livro tal citação refere-se:
“Deixando a cidade de Nazaré, foi habitar em Cafarnaum, à margem do lago, nos confins de Zabulon e Neftali, para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías: A terra de Zabulon e de Neftali, região vizinha ao mar, a terra além do Jordão, a Galiléia dos gentios, este povo, que jazia nas trevas, viu resplandecer uma grande luz; e surgiu uma aurora para os que jaziam na região sombria da morte (Is 9,1).” [10] [Mt 4:13-16]
Mais uma vez, a própria tradução católica faz referência a outro livro, que não o apresentado como sendo o apócrifo que é citado no Novo Testamento.
Seria por demais enfadonho analisar citação por citação para desmascará-las todas. Ao constatarmos esta tentativa de operação do engano logo nas duas primeiras referências podemos concluir que tais citações não passam de uma tentativa desesperada de atribuir crédito ao que não é digno de crédito.
Na ânsia de validar um cânon que possui livros e adicionais que atacam os princípios do próprio Deus que dizem inspirar tais livros, infelizmente ocorrem tentativas como estas que transformam pessoas de intenções verdadeiras, mas que são enganadas por uma doutrina equivocada em mensageiros da mentira, por ignorância.


Por Giuliano Barcelos

Notas

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