sábado, 11 de junho de 2011

A Igreja Católica é mesmo una?


É domingo, faz 24 graus em Itapecerica da Serra (SP), o Pe. Osmar de Carvalho atravessa a nave da Igreja com um incensário nas mãos, sobe ao altar e pede que os fieis se levantem para a prece inicial. Juntamente com o pároco, os 200 participantes pedem a Deus perdão por seus pecados e em seguida cantam Glória a Deus nas alturas. Após a primeira e a segunda leitura de trechos da Bíblia, os fieis são conduzidos ao altar para a celebração da Eucaristia. Homens, mulheres, adolescentes participam do pão e do vinho. Por fim, o padre invoca as bênçãos de Deus e despede-se da assembleia.
Essa poderia ser uma missa católica tradicional, não fosse o fato que a Capela de São Miguel e Todos os Santos estivesse localizada no complexo da Fundação Centro Teosófico Raja (uma espécie de “Gnose Cristã”) e fizesse parte também da Igreja Católica Liberal. Dirigida pelo Monsenhor Marcelo Rezende, a ICL foi fundada em 1916 (Londres) e afirma ser uma extensão da Igreja Vétero-Católica da Holonda, a qual se separou de Roma no século XIX por discordar da promulgação do dogma da Infabilidade Papal. No site da ICL Brasil, encontramos a seguinte informação.
“Pontos essenciais sobre a Igreja Católica Liberal
- Ela é uma Igreja Cristã, uma Comunidade de clérigos e fieis fundada em 1916 cuja sucessão apostólica, válida e reconhecida, deriva-se da Igreja Velho Católica da Holanda.
- Não é uma Obediência da Sé Romana nem uma Igreja Protestante, sendo autônoma e auto-governada.
- Reconhece a existência da Sabedoria Divina, a Teosofia, a pré-existência da Alma e sua evolução por meio de manifestações cíclicas no mundo, regidas pela lei de harmonia e justiça divinas…”
A ICL é apenas uma das milhares de denominações católicas independentes (cismáticas) existentes no mundo. No Brasil, pelo menos 70 denominações se dizem independentes administrativa e teologicamente da Igreja Católica Apostólica Romana.
A existência de igrejas e associações independentes do Vaticano (e isso sem mencionar as disputas internas, como as conhecidas entre tradicionais e carismáticos, adeptos do Opus Dei e jesuítas, conservadores contra liberais) põe em cheque uma vez por todas a teoria de que a ICAR seria “una” e a “verdadeira” Igreja de Cristo. Na verdade, é a ICAR a que mais possui placas e grupos cismáticos no mundo. Neste artigo veremos quem são, como e por que surgiram inúmeros grupos cismáticos a partir do Catolicismo Romano. Antes disso, convém conhecermos um pouco sobre a história da ICAR e os primeiros problemas enfrentados após 385 d.C.
Os primórdios da Igreja Católica Apostólica Romana
A ICAR cita o ano de 33 d.C. como a data de sua fundação. Isso se deve a ideia de que Pedro teria sido o “primeiro” papa a quem Jesus “entregou” as chaves dos céus e da terra. É a sucessão apostólica, invocada tanto pela Igreja Romana, como pelas igrejas católicas cismáticas. No prefácio do livro Crenças, religiões, igrejas & seitas: quem são? de Estevão Tavares Bittencourt, o Dom Antonio Afonso de Miranda faz a seguinte observação.
“Deus, sapientíssimo, não pode ser o autor de tantas religiões ou crenças. No mínimo, são ilusões ou enganos de interpretação da fé. Tendo Ele se revelado na “plenitude dos tempos” (Gl 4,4) em seu Filho Jesus Cristo, só o que Cristo transmitiu aos apóstolos e o que se herdou destes numa sucessão ininterrupta Igreja Católica tem foros de verdade revelada, portanto digna de fé”. [1]
No mesmo prefácio, o autor faz uso também do cremos católico para validar a ideia de que a ICAR é a “verdadeira” e “única” Igreja de Cristo.
“8. Nossa fé católica tem, assim, um ponto fundamental de apoio: a sucessão apostólica. Para validade do ministério humano-divino exercido dentro da Igreja instituída por Cristo, deve haver um elo histórico de sucessão aos apóstolos; onde se rompeu este elo, cessou o ministério legítimo e a ligação com o Senhor que salva. É o caso das nossas irmãs igrejas ditas “cristãs”, porém não-católicas, porque não são apostólicas.
9. Por isso, cremos que a união à Igreja Católica, efetivamente somente através da sucessão dos apóstolos, é garantia ordinária de remissão dos pecados, de vida em graça e penhor de salvação”. [2]
Diferente do que afirma o Catolicismo Romano, a Igreja fundada por Jesus e posteriormente difundida por seus discípulos e apóstolos, jamais fez parte do catolicismo ou de qualquer outra ramificação posterior. Ou seja, é impossível estabelecermos qualquer conexão entre a ICAR (pelo menos na forma como se apresenta hoje) com a Igreja fundada por Jesus. Na verdade, não existe uma data específica que poderíamos indicar como o ponto inicial da ICAR, mas, sim, um processo gradual de paganização que culminaria com a formulação do que hoje conhecemos como Igreja Católica Apostólica Romana. No entanto, alguns autores propõem o ano de 385 d.C. como a data em que a Igreja começa a caminhar para o secularismo e paganismo.  Nesse ano, o bispo Teodósio decretou o cristianismo como a religião “oficial” do Império Romano e ordenou que todos os pagãos se convertessem à nova religião. Como consequência, a Igreja (até então pura e cristã) entra em um processo acelerado de paganização, com a introdução de elementos do culto e das crenças pagãs e mitológicas.
A origem do termo “católica”, aplicado à Igreja Romana
Sete anos antes do decreto de Teodósio, os bispos que se reuniram para o Primeiro Concílio de Constantinopla (381 d.C) deram à religião que se desenvolvia a designação de “católica”. De origem grega, a palavra católica (καθολικος, lê-se katholikos) significa “geral” ou “universal”. Era essa a primeira tentativa de “unificar” o cristianismo em torno de um organismo central. Segundo um verbete da Wikipédia, o termo catolicismo é “usado geralmente para uma experiência específica do cristianismo compartilhada por cristãos que vivem em comunhão com a Igreja de Roma.” É a partir do Primeiro Concílio de Constantinopla que começa a ser difundido o conceito de que a Igreja Católica é indivisível, ou seja, para ser cristão é necessário estar em comunhão com a Igreja de Roma. No Credo Niceno-Constantinopolitano ou Símbolo Niceno-Constantinopolitano, encontramos a seguinte confissão de fé:
“Creio na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica.”
Para os católicos romanos, essa quádrupla descrição da Igreja a distingue de qualquer outra religião do mundo – porque, segundo creem, ela teve origem com Jesus e os primeiros apóstolos.  Acusam as igrejas evangélicas de terem se dividido em inúmeras denominações, de não possuírem um único pastor e de não serem apostólicas.
Os primeiros cismas na Igreja
Pouco tempo depois da formulação do Credo Niceno-Constantinopolitano, que dava a Igreja de Roma exclusividade na condução dos fieis, começam a surgir às primeiras cismas (divisões) na Igreja. Antes da divisão ocorrida em 1054, que veremos adiante e com mais detalhes, a Igreja se viu diante das primeiras contestações ao seu governo e/ou patriarcado, pondo por terra o conceito até então difundido de que a Igreja é “una”.
Nestorianos
Encabeçado por Nestório (patriarca de Constantinopla de 428 a 431 d.C), os seguidores da doutrina segundo a qual afirmava que em Jesus havia dois “eus” ou “duas” pessoas: uma divina, com a sua natureza divina, e outra, humana, com a sua natureza humana, se rebelaram contra a Igreja após o Concílio de Éfeso (431 d.C)), formando o que seria o primeiro grupo cismático conhecido.
Boa parte das ideias de Nestório foram tomadas de Teodoro de Mopsuéstia, quando de seus estudos na Escola de Antioquia. Condenado em 431 por defender, entre outras coisas, que Maria não era mãe de Deus (“Cristotokos” mãe de Cristo, em oposição ao “Theotókos”, mãe de Deus, na visão católica tradicional), se refugiou em um mosteiro onde viveu o resto da vida. Com o tempo, o Nestorianismo passou a ser a posição oficial da Igreja do Oriente. Apesar de alguns terem regressado à fé católica, um pequeno número de seguidores resistem em países como China, Índia, Irã e Estados Unidos. A Igreja Assíria do Oriente é a principal das remanescentes nestorianas.
Monofisistas
Alguns anos mais tarde, Eutyches de Alexandria propôs uma doutrina contrária à defendida por Nestório. Segundo ele, em Jesus haveria um só “eu” e uma só natureza (a divina), uma vez que a humanidade teria sido absorvida pela divindade. Enquanto seu oponente defendia a distinção das naturezas humana e divina (sendo duas naturezas e/ou pessoas diferentes) Eutyches afirmava a completa união das naturezas – daí a origem do termo “Monofisismo” (do grego μονο = único).
A ICAR concluiu que a doutrina de Eutyches seria ainda mais perigosa do que a de Nestório. Condenado como herege pelo bispo Eusébio de Dorileia e, posteriormente, pelo Concílio de Calcedônia (451), Eutyches enviou cartas a alguns dos principais bispos da Igreja e ao Papa Leão I, nas quais pedia ajuda. No entanto, a excomunhão lançada sobre ele foi considerada irrevogável.
Após a morte de Eutyches (em 456), a Imperatriz Eudóxia Aelia aderiu ao monofisismo e o fez conhecido na Pérsia. Outro que contribuiu para a divulgação da doutrina foi Jacob Baradaeus, que no século 6 incentivou a união das várias vertentes monofisistas, culminando com a criação da Igreja Ortodoxa Siríaca. Grupos similares existem ainda hoje no Egito, Etiópia, Síria e Armênia, constituindo uma massa de quase 5 milhões de adeptos.
Valdenses
No século XII, um movimento denominado “Valdense” (fundado por Pedro Valdo, comerciante de Lyon) foi perseguido pela Igreja por defender o direito de cada fiel de ter a Bíblia em sua própria língua. Por essa mesma época havia sido estabelecida – no Concílio de Verona (1186) – a “Santa Inquisição”, razão pela qual os valdenses se reuniam em grutas ou na casa dos familiares.
Quando começou (por volta de 1180), Pedro Valdo vendeu seus bens, deu o dinheiro aos pobres e passou a viajar e pregar a Palavra. O que o inspirou à busca do conhecimento e da salvação em Cristo, foi a leitura de Mateus 19.21, texto esse apresentado por um teólogo que havia sido chamado às pressas para auxiliá-lo em sua busca da verdade.
Encantado com a mensagem do Evangelho e sabedor de que a ICAR determinava que a Bíblia fosse lida apenas em Latim, Pedro Valdo encomendou uma tradução da Bíblia para a linguagem popular. Acabou excomungado, mas suas ideias se espalharam: não jurar, recusar a pena de morte, a hierarquia da Igreja e a crença em purgatório, indulgências e veneração dos santos etc. [3]
Boa parte das ideias defendidas por Valdo foram reunidas na Confissão de 1120, considerada como a “mais antiga confissão de fé protestante”. Apesar de algumas diferenças com os credos de Lutero e Calvino, a confissão valdense fazia uma explícita condenação da liturgia católica (artgs. 10 e 11), bem como os sacramentos (art. 8). Os valdenses consideravam como válidos apenas os sacramentos do batismo e ceia do Senhor.
Albigenses
Também conhecido como “Catarismo”, o movimento dos albigenses surgiu por volta do século XII, em Albi (sul da França) e pregava a existência de um deus do bem, criador da alma, e de um deus do mal, criador do corpo. Proibia o casamento, para evitar a procriação e legitimava o suicídio.
Considerados como hereges pelo Concílio de Tours (1163), os albigenses foram duramente perseguidos pela Igreja. Em Minerva, 140 discípulos foram condenados à fogueira porque rejeitaram o catolicismo como religião “una” e “verdadeira”. Pelo menos 50 mil albigenses foram torturados e mortos pela cruzada conclamada pelo Papa Inocêncio III.
Orientais Ortodoxos: o grande cisma de 1054
A maior crise enfrentada pela ICAR se deu em 1054, ano em que a Igreja perdeu parte de seu domínio no Oriente. Por obra de Miguel Cerulário – que se tornou patriarca de Constantinopla em 1043 -, foi lançada sobre Roma a excomunhão. Isso ocorreu após a visita do cardeal Humberto, enviado a Constantinopla pelo Papa Leão IX…

Por Johnny T. Bernardo

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