Concílium Tridentinum, Diariorum, Et Denzinger, 783 (1501).
“A santa e universal assembléia eclesiástica de Trento... ocupou-se sempre da superação dos erros e da conservação da pureza do Evangelho na Igreja. A seu tempo, este Evangelho foi prometido pelos profetas nas Sagradas Escrituras; Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, anunciou-o por Sua própria boca”.
“Ele mesmo fez que o Evangelho, como fonte de toda verdade salvífica e da ordem moral, fosse pregado a todas as criaturas pelos Seus Apóstolos. A santa assembléia eclesiástica sabe que esta verdade e esta ordem estão contidas em livros escritos e em tradições não escritas, que os Apóstolos receberam da boca de Cristo e que foram transmitidas de mão em mão, por obra do Espírito Santo, até chegar a nós”.
“Esta assembléia segue o exemplo dos padres ortodoxos ao reconhecer e venerar com a mesma piedade e reverência todos os livros do Antigo e do Novo Testamento – pois o único Deus é o autor de ambos – juntamente com as tradições que se referem à fé e aos costumes. Pois elas procedem da boca de Cristo ou foram inspiradas pelo Espírito Santo e conservadas na Igreja católica através de uma tradição ininterrupta”.
“E por isso houve por bem inserir neste decreto um catálogo de livros sagrados, para que fique bem assente e não haja a menor sombra de dúvidas acerca dos mesmos livros por este sínodo”.
Naquele conclave palco de tão grande dissidência, ao qual assistiram apenas quarenta e nove bispos, houve muita confusão em razão das acaloradas divergências de opiniões sobre títulos diversos, compendiados, seguidos de anátemas e maldições que foram lançadas sobre aqueles que não os aceitassem como matéria de fé, votados em meio a uma grande algazarra prelatícia.
Como de costume, franciscanos e dominicanos travaram renhidíssima luta corporal. Dois deles, venerados prelados numa demonstração de zelo quanto a suas idéias particulares, se engalfinharam e se estapeando mutuamente com ferocidade, agarrando-se às barbas um do outro, motivando Carlos V ameaçar os beligerantes de lançá-los na prisão, se não se comportassem no recinto dignamente.
E, em meio a toda essa algazarra prelatícia, a Igreja de Roma afirmou que, mesmo assim, houve “a assistência do Espírito Santo”! Pasmem!
Diante deste quadro de tão evidente amalgamação de opiniões dos prelados conciliares ali reunidos, foi necessário redigir os decretos por uma forma anfibológica.
Segue-se ao decreto tridentino uma lista de livros na qual acham incluídos os seguintes livros apócrifos; Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc e a última parte dos livros de Ester e Daniel, ou seja, desde o versículo 4 do capítulo 10 de Ester até o final do capitulo 16, e os capítulos 13 e 14 de Daniel, que tratam da história de Susana, a história de Bel, o episódio do Dragão e o Cântico dos três meninos.
Observando o que acima foi exposto, vemos que os “padres ortodoxos” da Igreja Católica, por uma “tradição ininterrupta”, recebiam os livros “apócrifos” e os outros livros citados no decreto, “com a mesma piedade e reverência”.
Isso não foi verdade! Pois o assunto que os “padres ortodoxos” e um grande número de teólogos, no seio da própria Igreja Católica haja concordando alguma vez, “com a mesma piedade e reverência” foi exatamente o de banir do sagrado cânon da Escritura os livros apócrifos!
A Escritura Sagrada oficial da Igreja Católica Romana é a Vulgata traduzida para o latim por Jerônimo (383-405 d.C.), um dos Pais da Igreja do século V.
O Antigo Testamento, exceto o livro de salmos, foi traduzido do texto hebraico, e o Novo Testamento, do texto grego.
Ao final do século V, o conhecimento destas duas línguas havia descido a nível tão lastimável e, onde as Sagradas Escrituras eram lidas, usava-se a Vulgata latina, ainda que os prelados do Concílio de Trento reconhecessem que a tradução de Jerônimo não era de todo perfeita e, por esta razão, desejassem fazer uma nova tradução da Bíblia Sagrada.
Como havia urgência dos integrantes do Concílio de Trento reconhecer um texto oficial, para o qual se pudesse apelar, sempre que necessário, o texto escolhido foi o da milenar tradução de Jerônimo, o qual foi considerado padrão da Igreja de Roma.
Vale salientar que a lista dos livros canônicos do Antigo e Novo Testamento, dada por Jerônimo, não incluía a princípio os apócrifos, cuja inspiração divina ele se recusou aceitar. Mas mesmo assim o Concílio de Trento concluiu:
“Se alguém não receber como canônicos todos estes livros, no todo ou em parte, como são lidos ordinariamente na Igreja Católica, e como estão contidos na antiga edição da Vulgata latina, ou, ainda, consciente e deliberadamente, desprezar as tradições aqui inseridas, seja anátema”.
Rejeitamos, portanto, os livros apócrifos:
- Porque estes livros não estão no cânon hebraico do Velho Testamento;
- Porque não há no Novo Testamento nem uma só citação desses sete livros;
- Porque há no Novo Testamento cerca de 260 citações diretas e de 370 alusões a passagens do Velho Testamento, mas não há uma única citação de Cristo ou de qualquer um dos apóstolos aos livros apócrifos;
- Porque durante 15 séculos os livros apócrifos não receberam a aceitação da Igreja, até que, em 15 de abril de 1545 e em sua Sessão IV, o Concílio de Trento decretou os controvertidos livros como sagrados e canônicos;
- Porque estes livros apócrifos contêm passagens com ensinamentos contrários à revelação divina.
Segundo esta, as verdades estabelecidas pela Igreja Católica, que não estão fundadas na Escritura, podem ser demonstradas pela tradição não escrita. E, portanto, o fato de que um dogma não apareça explícita ou implicitamente na Escritura não constitui nenhum obstáculo, pois em todo caso se pode apelar para a tradição não escrita.
O teólogo franciscano J.H. Geiselmann afirmou, juntamente com outros investigadores, que a teoria das duas fontes não se amolda ao sentido do Concílio de Trento. Segundo a interpretação desse teólogo contemporâneo, ao determinar a relação entre Escritura e Tradição, “apresentaram-se dois esquemas aos padres conciliares. Dizia o primeiro que a verdade do Evangelho está ‘partim in libris scriptis, partim et sine scripto traditionibus’, em parte nos livros da Escritura e em parte na tradição não escrita”.
Ele diz que contra este esquema “levantou-se forte oposição”, levando “os padres conciliares a eliminar as palavras ‘partim,partim’e colocar em seu lugar ét’” 11.
O Concílio Vaticano II considerou de maneira especial, renunciando à teoria das duas fontes segundo a qual a Escritura e a Tradição são consideradas como duas possibilidades de conhecimento, a correr paralelas sem conexão alguma entre si, apesar dos prelados reconhecerem que sua doutrina não é totalmente clara.
Mesmo assim, com estas exposições, o Concílio não deu resposta a todos os questionamentos, deixando abertas, intencionalmente, algumas questões.
A Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina “Dei Verbum” veio tentar salvar o problema, dizendo que a Tradição, sedimentada de “modo especial” (spciali modo exprimitur) na Escritura, é, segundo Michael Schumaus, “entendida como a ação de transmitir e como a ação transmitida”.
Este mesmo Teólogo crê “que a Escritura se interpreta a si mesma, mas para evitar possíveis controvérsias, devemos acrescentar que a norma de fé presente e operante como enteléquia na Escritura, que dá o critério para a inteligência desta, está nas mãos da autoridade da Igreja” 12.
Nenhum comentário:
Postar um comentário